Rua Paissandu. Divisa dos bairros de Laranjeiras e Aterro. Nem os correios sabem ao certo em qual dos dois este prédio está. É sábado, e milagrosamente está nublado. Odeio o tempo assim. Mesmo com a vantagem de não sentir calor usando as malhas, odeio dias nublados... Eu demoro uns cinco minutos sempre antes de lançar o gancho no prédio em frente. Estou agachado, escondido, enquanto concentro as atenções no trajeto. Se eu fosse uma pessoa normal, eu não teria todo esse trabalho. Se eu morasse num canto mais isolado do Rio (talvez colado em alguma floresta, nunca parei para pesquisar) eu não teria de passar os últimos dois meses pulando de prédio em prédio, mantendo um padrão aleatório, para garantir que ninguém me veja ou siga, pelo menos no começo do circuito.
São 6h32, a reunião é 9h, e o local é relativamente perto. Escolhi dizer que precisava ser longe do lugar onde eu me escondia para que eu pudesse evitar ser seguido. Na verdade disse isso pra despistar. Afinal, já é o quarto ano que estou nesse ‘serviço’, e é a primeira vez na qual a polícia não atira em mim. Meu trabalho é fazer aquilo que eles não são capazes de fazer sozinhos. Adotei um nome, apenas por mídia. Meu uniforme não tem logos. Nunca teve. Hoje ele me protege e me oculta. No meu primeiro ano ele só fazia a segunda parte.
Na verdade estou usando o que só me oculta. Malhas de poliamida e elastano, na calça, blusa, capuz e balaclava. Só vou vestir a ‘armadura’ de kevlar quando chegar à reunião no que nós chamamos de QG.
Levanto-me, e puxo de novo o capuz. Ele tem um efeito mais visual do que prático. Meu rosto já fica oculto pela balaclava. O capuz só o esconde mais. Dou alguns passos à frente e lanço o gancho com a corda. Tecnologia especial, que nem eu, nem o governo brasileiro teríamos como comprar. Eu consegui treinamento numa cidade do exterior nos Estados Unidos. Meu ‘mestre’ tem como ‘passatempo’ (digamos assim) combater o crime. Mais ou menos como eu faço. Ele só tem motivos diferentes. Eu o encontrei depois de meu primeiro ano de luta. Fiquei meu segundo ano longe da cidade - oficialmente fazendo pós-graduação, mas na realidade eu treinava de forma exaustiva. Quando voltei, encontrei em casa material suficiente para ter uma verdadeira guerra contra o crime.
O primeiro salto é sempre mais difícil. Depois que o corpo acorda, percebe que você está seguro, tudo se torna mais fácil. Eu puxo e caio num rolamento preciso no prédio em frente. Eu esvazio a mente e, ao voltar à realidade – em questão de 10 minutos – já estou no prédio da Avenida Rui Barbosa. É um processo automático, que eu consegui já na segunda vez que precisei usar o sistema. Lógico, eu também tive de driblar o pobre do aspirante que estão colocando pra ver de onde eu venho.
Respiro fundo. Entro num elevador oculto que fica no alto do prédio. Ele leva para o subterrâneo. Ainda estão trabalhando num lugar melhor que um estacionamento abandonado. Possivelmente vou ter de me mudar quando isso acontecer. Talvez seja a hora de pensar numa casa isolada aonde possa manter esse arsenal e sair no VIT.
VIT é o ‘carro’ que uso. Veículo Inteligente para o Trânsito. Uma moto seria mais prática. Mas não gosto de motos. Assim que firmei a parceria com o governo em dezembro disse que precisava de um veiculo para atender minhas necessidades para o serviço. Eu fiquei meu primeiro, terceiro e quarto anos andando de ônibus, arriscando meu carro e correndo muito pra combater o crime. Expliquei tudo isso e disse que tinha dados, mas não conhecimento para fazer o veículo. Uma mentira naturalmente. Formado em engenharia, eu poderia ter já apresentado um projeto para produção em larga escala se quisesse... Bom eu queria. Mas levantaria suspeitas. Apresentei uma lista detalhada sobre como o ‘carro’ deveria ser. Mas dois itens eram principais:
Pequeno – Apenas um pouco maior do que uma moto com a mesma dirigibilidade, mas mais largo, com quatro rodas e proteção total para o guiador.
Veloz – O motor deve ser potente o suficiente para altas velocidades e com torque adequado para grandes acelerações.
Escrevi muito mais. Eu fiquei três anos vendo o que me faltava durante as rondas e anotando. Disse que deveriam procurar engenheiros para desenvolver o projeto. Com isso sete empresas foram selecionadas para o projeto. Inclusive a que eu trabalho. Por enquanto é claro. Se tudo correr como planejado, eu termino de juntar a base para meu próprio negocio em 11 meses. Mas, acabou que eu mexi uns pauzinhos e o projeto caiu no meu colo. Ele já estava pronto. Mas esperei o prazo para entregar. Na análise escolhi o meu projeto, copiei as melhores ideias e pedi que pagassem algo para os autores das ideias copiadas, e as enviasse para o vencedor fazer as adaptações necessárias. No final surgiu o VIT.
Nesse momento estou olhando para ele. Azul e cinza como meu uniforme, ele tem um visual robusto. É um verdadeiro orgulho pra mim... Mas eu ainda atuei dizendo que era um absurdo usar isso em prol da violência e muitas coisas mais. Convenceu muita gente. Teria me convencido também, os anos de teatro continuavam sempre valendo a pena.
Eu me deito numa cama próxima a um dos armários do ‘salão’. Pedi um tempo para descansar. Antes eu travei a porta. Caso alguém tente entrar, soará um pequeno alarme e ela só vai abrir assim que eu me levantar. Medida de segurança para caso algum deles se faça de engraçadinho e tente tirar minha máscara. Sei que morrem de vontade de saber quem eu sou. Estavam no meu encalço desde que comecei... E no caso desde que eles eram somente o Aspirante Fonseca, e a Subtenente Freitas. Jorge e Lucia. Jor e Lu é como eu os chamo. E eles só me chamam de Conselheiro. Nada a reclamar. Os dois são do Segundo Batalhão de Polícia Militar. E suas promoções, bem ou mal são indiretamente, minha responsabilidade. Eles ganharam notoriedade e patentes me perseguindo. Foram sempre dois cães sarnentos, se posso dizer assim. Hoje são Capitão e Major... E foram escolhidos, porque, bem ou mal, eles são os membros da corporação Fluminense que mais me conhece. Ainda assim eu não confio neles minha identidade.
Normalmente, eu não digo quem eu sou por motivo óbvio: proteger a pessoa. Raras são as pessoas que sabem manter a boca fechada, e naturalmente, sendo eu inimigo de dezenas de bandidos (a maioria ligada ao tráfico), expor minha identidade poderia acabar com a vida das pessoas que eu amo.
Eu poderia muito bem não fazer isso. Mas sempre fez parte da minha natureza ser inquieto. Eu precisava ser assim, fazer as coisas que eu faço. Lutar contra toda injustiça é uma das formas de levar minha forma de ser para um lado positivo. O negativo seria virar um psicopata. Eu já pensei muito nisso. Cheguei a essa conclusão.
Antes de fechar os olhos conferi de novo cada canto do salão. Nenhuma câmera. Fecho os olhos, mentalizo 9h e... Apago.
Eu acordo às 8h45. Lembro-me de um professor de matemática, ao citar a série de Fibonacci, disse de alguns casos fisiológicos que são ligados à matemática. Entre eles, se o corpo não estiver exausto, e formos dormir mentalizando um horário, ele faz algo como se programar e desperta exatos 15 minutos antes.
Destravo a porta, não antes de colocar a mascara ‘nova’, feita de kevlar, e guardar a outra em um dos bolsos ocultos da calça. Uma das vantagens de ter lido alguns livros de costura antes de se fazer um uniforme.
Sento-me à mesa central abaixo a cabeça apoiando-a no braço direito. A porta abre.
-Conselheiro – A voz firme e característica, Capitão Jorge Fonseca – Pontual como sempre.
-Adiantado, você quer dizer Jor? Estou aqui há bastante tempo já. E já disse para tentar parar de colocar o pobre do aspira... Qual mesmo o nome dele?
- Isso importa?
- Na realidade não. Mas ele podia estar fazendo alguma coisa mais útil do que vigiar os prédios. Acho que você não pode mais me prender. Não depois de virar um mascarado oficial.
Eu levanto o rosto. A cara dele não é das mais amigáveis. Ele não aceitou tão bem quanto Lu a minha carta branca para agir. Deve ser difícil ver o alvo de todos esses anos sentado na sua frente e não poder fazer nada para acerta-lo. Mas confesso que me divirto um pouco com esse jeito dele.
- Onde está a Lu?
- Está vindo. Ela pediu para eu vir na frente enquanto estaciona o carro.
- Pode adiantar a pauta de hoje?
- Eu prefiro esperar que ela chegue. Mas é sobre a invasão.
Estávamos numa sala fechada sem câmeras ou escutas. Ainda assim Jor se treinou pra sempre ter cuidado ao falar. ‘Invasão’ era realmente isso, e no momento apenas seis pessoas sabiam dela: o presidente, o governador, o prefeito, Jor, Lu e eu.
As favelas já estão praticamente ‘pacificadas’. Eu ajudei nesse processo. Mas o problema é com a violência em algumas regiões. Com minhas orientações, agora nos preparamos para tentar ‘fechar’ de vez o cerco. Eu me atreveria a dizer que somente a nado um marginal sai do Rio sem ser detectado. Quando tracei os pontos e as formas de atuação, deixando tudo bem claro e bem amarrado foi que a Lu me disse uma coisa que eu já esperava ouvir um dia: ‘Então por isso você se chama Conselheiro?’
É bem por isso mesmo. Uma ligação pessoal com os nomes em latim me fizeram escolher essa alcunha não tão sonora, nem tão assustadora, mas bem realista. Eu nunca gostei de violência Mas eu precisava colocar meu ponto inquieto para fora de algum jeito. Meu treinamento foi tardio, e era fraco demais para me atrever a lutar. Mas treinei o suficiente para ter mobilidade aliada à força. Durante o primeiro ano isso foi suficiente. No segundo eu arrumei um jeito de sumir do mapa tanto como herói quanto como engenheiro. Viajei bastante, e até eu evito guardar alguns dos lugares. Eu tenho o costume de falar dormindo. Isso é um pouco perigoso, mas pelas últimas gravações eu não tenho falado nada. Ainda bem. Resultado de um misto de concentração e meditação.
Voltando a falar sobre os bandidos. O Rio hoje é uma bomba relógio. Alguns estavam escondidos dentro de casas no próprio Centro. Sem saída. Eu acabei com a ousadia que sempre foi uma característica desses marginais. Mas nós deixamos uma área livre. Uma região abandonada próxima ao cais na qual não conseguimos um policiamento eficiente. Na verdade mandamos os corruptos para lá. De propósito. O motivo é simples: Queríamos os bandidos lá. Deu certo. O cerco está fechado. Foi arriscado, mas tiramos as pessoas de bem antes de armar a arapuca. Tudo muito bem planejado. Mas só Lu, Jor e eu sabemos todos os detalhes.
Existem escutas em cada prédio da área. Eu as coloquei lá. E são sensíveis ao toque. Se alguma for descoberta um alarme tocará na nossa central e a escuta entrará num processo de fusão. Entraria em ação o plano B aonde mandará a polícia em peso prender quem for possível naquele canto. Nenhuma foi encontrada. Lu tem dedicado os últimos meses a ouvir tudo. Abriu mão de seu trabalho como Major. Ela é nosso sonar. Depois de ouvir muita coisa ela me ajudou a traçar o plano A. Mas o plano A é diferente. O plano A sou eu.